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A MORTE DA CRIANÇA

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Vila Praia de Âncora

       Caminho lentamente, de pés descalços, sobre os vidros da minha mente negra. Procuro a saída, mas não a encontro. Em frente dos olhos reina a escuridão de quem está preso às suas emoções demasiado pesadas para os ombros. Não vejo nada, não sei em que direção vou, se poderei embater contra alguma parede ou cair por um penhasco, encontrando a paz do meu derradeiro fim. A dor que me consome pelos cortes nos pés é atroz. A certo ponto, apercebo-me que não consigo andar mais, como se me tivessem cortado o tendão de Aquiles sem dó nem piedade. Caio desamparada no meio do chão, a chorar compulsivamente de desespero, de frustração, de terror.

      De repente, uma luz. Parece a iluminação de uma sala. Fico em silêncio, muito atenta, de olhos arregalados. Ouço o som típico do eletrocardiograma da sala de cirurgia da clínica. O som é estranho, algo de errado se passa… Ignorando a dor física, limpo as lágrimas com as costas da mão, levanto-me a custo e caminho o mais rápido que posso na direção da sala iluminada. Quando entro, vejo a marquesa de cirurgia à minha frente, a suportar uma cadelinha de porte médio, branca e castanha, em convulsões. Está entubada, a oxigénio, a soro com um cateter e com as pinças do eletrocadiograma ligadas. Deixo-me invadir pela adrenalina da urgência. Sem sequer me questionar como é que ela foi ali parar, corro para o armário dos medicamentos, abro uma ampola de Diazepam e injeto-lhe o relaxante muscular na veia. Ela parece estar a acalmar, mas continua fora de si, inconsciente da realidade. Por momentos, penso tê-la conseguido estabilizar, mas depois as convulsões voltam, juntamente com uma taquicardia brutal seguida quase instantaneamente de uma bradicardia assustadora, não acompanhada por movimentos respiratórios. Está a entrar em paragem cardio-respiratória… Automaticamente, procuro ampolas de adrenalina. Sem ter tempo de fazer quaisquer cálculos de dose, injeto uma porção do medicamento diretamente na veia e começo a fazer massagem cardíaca. Ok, os batimentos cardíacos por minuto aumentaram. “Mas ela provavelmente vai morrer…” Ignoro as vozes do meu íntimo e corro para o outro lado da marquesa para conseguir ventilá-la artificialmente. Os batimentos cardíacos voltam a diminuir, torno a fazer massagem cardíaca, voltam a aumentar, concentro-me outra vez nos movimentos respiratórios… “olha para a pupila”… assim o faço. Para meu horror, está dilatada e sem reflexo palpebral. As mucosas brancas marmoreadas em hipoxia. Nada de movimentos respiratórios voluntários. “Ela já está morta”. Cala-te!!! Volto a fazer massagem cardíaca. Quantos minutos terão passado? Um? Dois? Tento ventilá-la novamente, mas desta vez sem sucesso. Os pulmões já não expandem?! “Rita, pára! Ela já está morta.” Faço novamente a massagem cardíaca. Os batimentos cardíacos aumentam, mas a linha do eletrocardiograma está longe de normal… Parece só ter despolarizações ventriculares… É neste momento que me afasto e entendo que não há nada que eu consiga fazer. Ela já está com morte cerebral. Mesmo que por milagre ela voltasse à vida, poderia não passar de um vegetal. Em desespero começo a gritar palavras atabalhoadas, as lágrimas escorrem que nem cascatas pela minha face. Dobrada sobre a marquesa, nem consigo abrir os olhos. Por algum motivo, a morte daquele animal é uma realidade que não consigo aceitar sem sentir as vísceras a queimar por dentro.

        A soluçar e a tremer, olho para as plantas dos pés. Já não têm vidros espetados e não há sangue no chão. Aliás, nem descalça estou. Mais uma vez, não sinto a necessidade de me perguntar o que se passa. Simplesmente estou agradecida por ter uns ténis calçados. Subitamente, a frieza profissional apodera-se de mim. Vou buscar tubos de laboratório e esforço-me por colher sangue do cadáver. “Pode ser que os donos queiram perceber porque é que ela morreu”. Enquanto procuro um saco preto de plástico, as lágrimas ameaçam perturbar-me. Ao regressar à sala de cirurgia para acondicionar o animal acabado de morrer, apercebo-me, para meu grande horror, que em cima da marquesa não está a cadelinha, mas sim uma criança que não deveria ter mais do que quatro ou cinco anos. Em absoluto choque e sem saber como reagir, aproximo-me. A criança parece-me estranhamente familiar… De repente, passa-me pela mente uma memória antiga e, com terror e incredulidade, reconheço quem jaz em frente dos meus olhos…

          Num suspiro profundo e aterrorizado, acordo repentinamente e sento-me na cama. A soluçar e quase sem conseguir respirar, agarro-me aos cabelos e deito-me em posição fetal. Finalmente mais calma, levanto-me da cama e vou beber um copo de água, sempre a pensar no sonho que acabei de ter. Afasto as cortinas e observo atentamente a Lua amarela escondida numa noite sem estrelas. Tudo não passou de um pesadelo. Mas, infelizmente, tratou-se de um pesadelo demasiado real… Lembro-me da menina morta que vi por último em cima da marquesa. Ao pensar nos pormenores todos do sonho, entendo o significado de tudo.

      A criança que jazia morta na sala de cirurgia era eu própria e a escuridão que sempre me acompanhou simbolizava as trevas da minha mente.

19/04/2017

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