Carregamos demasiadas emoções por este mundo fora. Por vezes, transcrevê-las em palavras, é a única forma de entender a sua essência. A escrita ajuda a ver a sua origem e permite uma convivência mais pacífica. Quando nos penteamos vemos o corpo no espelho, quando escrevemos sobre emoções, é a alma que se reflete.

Blog escrita criativa
Merda sou mesmo adulta.
E agora?

Calçada dos Gigantes, Irlanda 2019
Quando os estudos terminam e chega a altura de enfrentar o mundo real, há sempre aquele período de transição em que ainda nos sentimos adolescentes, mas os momentos do dia a dia levam-nos a perceber que, afinal, já somos adultos. Partilho aqui 10 desses pequenos momentos:
1. A minha patroa pousou uma folha de papel em cima da mesa e pediu-me para assinar. Com o coração emocionado, agarrei numa caneta e rabisquei o meu nome no meu primeiro recibo de ordenado.
2. Cheguei a casa e fui ver o correio. Havia uma carta. A primeira carta desde que começara a trabalhar. Era uma conta da EDP. O destinatário era eu.
3. Abri o estendal novo da marca Vileda, oferecido pelos meus pais. Admirei-o cuidadosamente e comparei-o com o anterior, comprado por mim, na loja dos chineses. Este era muito mais resistente, maior, com diferentes inclinações de forma a garantir a secagem da roupa o mais eficiente possível. À medida que ía estendendo ali a roupa, não conseguia deixar de sorrir. Foi então que parei para pensar e apercebi-me que aquele tipo de entusiasmo direcionado a um estendal era uma emoção totalmente nova.
4. Estava a preparar o tempero para fazer frango assado no forno. Juntei os ingredientes numa tigela e procurei pelo utensílio mais apropriado para esmigalhar o alho e misturar com o azeite e ervas aromáticas. Pela primeira vez na vida, senti necessidade genuína de um almofariz.
5. Recebi uma mensagem da empresa de telecomunicações. Peguei no telemóvel e respirei fundo. Pela primeira vez, era eu que tinha que renegociar as condições do contrato.
6. Marquei o número e liguei para o consultório da minha ginecologista. Já não tinha idade para ser a minha mãe a fazer as minhas marcações.
7. 15 dias seguidos de férias começaram a parecer uma eternidade e quase um luxo.
8. Deixei em cima da mesa o dinheiro do mês para a senhora das limpezas. Enquanto pousava as notas, pensei que aquele era o dinheiro mais bem gasto do mês.
9. Abri a saca de ração para as gatas e enchi as gamelas. Enquanto as via comer, apercebi-me que aquelas duas alminhas estavam completamente dependentes de mim. Sempre tive animais, mas nunca tinha sido eu a responsável pelo seu bem estar. Agora era diferente. Era o meu ordenado que pagava a sua comida, a areia, as vacinas, os medicamentos, tudo… Senti, subitamente, o peso sério da responsabilidade que vem com a adoção de um animal.
10. O momento em que me apercebi que os meus erros do dia a dia podem ter um impacto direto nas vidas de outras pessoas.
Em todos estes momentos pensei: “Merda, sou mesmo adulta. E agora?” A verdade é que passar por todas estas pequenas lições do dia a dia, ensinaram-me a ver as pessoas de outra forma. Dou por mim a evoluir numa mistura de exigência acompanhada de maior tolerância. Treino a paciência e aprendo quando a devo perder. Entender que toda e qualquer história tem sempre algo que não conheço e que devo julgar o mínimo possível, para não haver arrependimentos maiores. Ser-se adulto não é fácil. Mas não há melhor sensação que a independência económica, a construção de uma vida nossa, saber-nos úteis para a sociedade.
30/12/2019