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Natal em Junho

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          Foi numa breve passagem que me espantei. Na curva, à noite, na Baixa de Palmela, espreitei pela janela e vi uma vivenda humilde, com um presépio à escala real, emoldurado por luzes de várias cores, no meio do quintal. O que me surpreendeu neste cenário foi ter-me cruzado com ele a meados de junho. Quando se veste manga curta e calções em Portugal, não é suposto ver luzes de Natal. Para além disso, também achei curioso o facto de só eu notar que havia ali algo deslocado no tempo.

        Já em casa, na cama, ao fechar os olhos para dormir, dei por mim numa obsessão. Não conseguia parar de pensar na casa, nas figuras do presépio, nas luzes. Intrigada, a necessidade de explorar esta miragem crescia dentro de mim. A certo momento, ao ver que o sono se recusava a vir, decidi que não aguentava mais. Levantei-

-me, vesti-me e enfiei-me no carro, estrada fora. Ao estacionar, senti o coração palpitar. Incomodava-me a boca seca e o formigueiro quente na barriga. Ao entrar na propriedade, fui invadida pelo frio. Ali estava eu, com roupa de verão a envolver-me no gelo de dezembro. As figuras do presépio decoradas com luzes sorriam para mim. De alguma forma, sabia estar no sítio certo, embrenhada num mistério que ainda não sabia se queria desvendar. Algo assustada, bati à porta, sem obter qualquer tipo de resposta. O espaço parecia abandonado. Com as mãos a tremer, rodei a maçaneta e entrei. Para meu espanto, o interior da casa revelou-se acolhedor, com a lareira acesa, o pinheiro montado e a família à mesa.

          - Peço imensa desculpa! - exclamei, muito corada. - Não sabia que alguém estava aqui.

       No entanto, ninguém me parecia ouvir. Era como se eu fosse um fantasma, um ser invisível e sem voz. Apenas uma criança, que deveria ter os seus cinco anos, deu pela minha presença e fitou-me com um sorriso. Ao reconhecer a face da menina, perguntei-me se não estaria a enlouquecer. Sem me dar tempo para reagir, a criança levantou-se da mesa, segurou-me na mão e levou-me para o seu quarto, todo ele forrado de brinquedos e memórias que me eram demasiado familiares. Num gesto lento, sentámo-nos na cama pequena revestida por um cobertor com um grande arco-íris.

        - Aqui podemos conversar com mais calma. Não te preocupes com eles. - Disse, quando se apercebeu do meu desconforto a olhar para a porta. - Eles não se dão conta de nada. Já mal dão pela minha presença, muito menos pela tua. Sabes quem eu sou? - Perguntou-me a voz delicada da criança, numa forma de discursar claramente demasiado madura para a idade.

          - Sei. - Respondi, com a voz sumida. - Tu és eu. E eu sou tu.

        - Certo! - A menina parecia animada, quase eufórica. - Estava a ver que nunca mais aparecias. Já te espero há demasiado tempo.

         - Como é que isto é possível? O que é que se está a passar?

      O sorriso desvaneceu-se num ápice, tornando o cenário ainda mais perturbador do que aquilo que já era.

       - Estás mais a leste do que aquilo que pensei… - Ouvir a minha voz de criança desiludida com o meu ser adulto é algo que nunca esquecerei. - Há meses que me procuras e agora és tu que tens as perguntas? Faz-me o favor de pensar, olha para dentro de ti.

     Demasiado inquieta para permanecer sentada, levantei-me e afastei-me daquela expressão reprovadora. Olhei pela janela durante uns momentos. Uma neve lenta caía lá fora, mergulhando as figuras do presépio num frio que me era distante. Foi então que senti uma emoção forte a despertar. Como ter uma saudade que magoa a ser desvanecida pelo abraço de um ente querido há muito perdido.

          - Julguei que tinhas morrido… - Foi a única coisa que fui capaz de dizer.

          - E quase morri. Andei aos caídos, moribunda durante muito tempo.

          - Eu vi-te morta. Naquela noite em que não a consegui salvar…

          - Sim, eu lembro-me. Na noite em que morreu a tua primeira paciente. Mas não foi só aí que fiquei magoada. Sempre que algo de traumático te acontecia, eu levava outra facada.

          - Não podemos ser dramáticas. - Respondi secamente, enquanto retinha as lágrimas.

          - A vida de adulto é mesmo assim. Coisas más acontecem.

        - Mas eu não levo a facada quando as coisas más nos acontecem. Eu fico magoada e esquecida quando tu não sabes lidar com elas. Quando achas que tens que me afastar para sobreviver.

          - Se calhar eu não posso ter a tua ingenuidade quando lido com situações difíceis.

          - E já não tens situações difíceis? - Não pude deixar de notar como a criança em mim parecia mais sábia que o meu ser adulto alguma vez foi.

          - Tenho.

          - Então como é que me encontraste?

        Parei para refletir. A neve já não caía. Um tapete branco escondia a relva, assim como as minhas pegadas pelo jardim. No meu coração primitivo, a resposta era óbvia.

         - Acho que tinha saudades tuas. Gosto demasiado de ti. E, honestamente, pensando com cuidado, sei que reconheci em ti peças importantes que não podem ficar esquecidas. Isto se quero ser feliz. A responsabilidade da vida já pesa demasiado nos nossos ombros. Talvez finalmente tenha percebido que a tua leveza de espírito me pode ajudar a levantar um pouco desse peso.

           - Ora aí está.

          Sorrimos novamente uma para a outra. O ambiente ficou mais acolhedor e aquele cenário que inicialmente me perturbava, agora transformava-se num calor reconfortante. Quando chegou o momento de partir, percebi que não queria enfrentar o frio sem levar a criança comigo. A família continuava a jantar, sem ter dado por nada. Parecia que aquela menina, de qualquer forma, já não pertencia ali. Num impulso, ajoelhei-me e abracei o meu ser pequenino. Foi então que tomei a coragem para perguntar:

           - Queres vir comigo?

          Emocionada e aliviada, a criança sorriu-me de volta.

          - Estava a ver que nunca mais perguntavas!

        Foi assim que, de mãos dadas, enfrentamos o frio em conjunto, pisamos a neve gelada e atravessamos os portões, de volta ao calor do mês de junho.

20/06/2024

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