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AQUELE ÚLTIMO MOMENTO

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            Recebi-te com um sorriso nos lábios. Não queria que soubesses. Estávamos os dois a sós. Depois de tudo termos falado, o teu dono teve que se ir embora, já estava atrasado para o trabalho. Abri a transportadora com calma para não te assustar. Quando fitei os teus olhos azuis, derreti-me uma vez mais com o teu carinho. “Gatinho”, sussurrei-te de forma dengosa, enquanto acariciava a curvatura do teu queixo. Apesar da dificuldade respiratória e do desconforto que te assombravam, ronronaste para mim. Gostavas de mim. Confiavas em mim. “És tão bom gatinho...”, repeti estas palavras vezes e vezes sem conta enquanto agarrava com firmeza a tua patinha para conseguir rapar-te o pêlo. O barulho da máquina tosquiadora assustou-te, mas nem tentaste morder ou fugir. Estavas muito doente e a minha cara era-te extremamente familiar. Não precisei de pedir a ninguém para me ajudar a conter-te. Não era a primeira vez que estavas mal e em todas as outras ocasiões eu apareci para te ajudar, para te dar conforto. Tu conseguias ver isso em mim. Comecei a cantar baixinho uma música alegre enquanto te punha o garrote e depois o cateter intravenoso. Ameaçaste um resmungo quando te piquei porém, uma vez mais, nem testaste fugir. Não porque não conseguisses, mas porque não quiseste. Confiavas em mim. Gostavas de mim. Fui cantando para ti enquanto preparava uma seringa cheia de um fármaco líquido, azul. Aspirava para ti a máxima tranquilidade. Não queria que desconfiasses, que entendesses o que se estava a passar, que soubesses o que ía acontecer. Afaguei-te o lombo e dei-te um beijo no alto da cabeça, entre as orelhas. Gentilmente, acoplei a seringa no cateter e empurrei o êmbolo lentamente. “Lindo gatinho, que lindo gatinho...” cantarolava repetidamente. Fechaste os olhos com a cabeça aconchegada no meio das mantas. De repente, deixaste de te mover. Tranquilamente, via-te a partir. “Lindo gatinho, que lindo gatinho...” A tua terrível dificuldade respiratória esvaiu-se no último suspiro. Quando soube que já não me ouvias, parei de cantar. Agarrei o estetoscópio para ouvir o silêncio do teu coração. O teu corpo continuava quente, mas já não estavas ali comigo. Limpei as lágrimas com as costas da mão e fui buscar um saco preto. Atordoada, não encontrava o que procurava e deixava cair tudo ao chão. “Merda das emoções!”, pensei, irritada comigo própria, “Só atrapalham!”. Ainda estavas quente quando te disse adeus e fechei a arca congeladora. Deixei-me estar ali, por momentos, sozinha, envolta numa arrepiante transcendência de mim mesma. Esperei, impacientemente, que parassem de se formar novas lágrimas. Custa muito quando nos afeiçoamos a fundo. Procuramos o bem resgatando da doença. No entanto, por vezes, em prol de um bem maior, temos que aceitar a derrota, levantar a bandeira branca e encontrar a paz na morte. Ainda tinha o resto do dia de trabalho pela frente e pessoas à minha espera do outro lado da porta. “Merda para estas emoções que só atrapalham!” Respirei fundo, afastei-me da arca e preparei-me para a próxima consulta, sempre com um sorriso nos lábios.

          Não é verdade que veterinário não sente. Não é verdade que se torna mais fácil com o tempo. Nós sentimos. Apenas aprendemos a sentir em alturas mais convenientes. Uma voz na cabeça persegue-me: “Não há tempo agora, sentes depois”. Foi no final do dia que encontrei esse pequeno encosto no tempo e decidi pegar numa caneta, numas folhas brancas de rascunho e finalmente dar luz às emoções que estavam guardadas na gaveta há cinco horas.

         Pensei no teu pêlo branco, no teu olhar azul expressivo, nas tuas regueifas boas nessa barriga felpuda para dar festinhas, no teu miado, no teu ronronar sempre que te pegava ao colo. Lembrei-me da expressão de dor e tristeza do teu dono quando entendemos que tínhamos que te deixar partir, das últimas festas que te deu enquanto continha as lágrimas arduamente. Ele gostava imenso de ti e foi por ti que te deixou comigo naquela sala. Eras novo, um bom gatinho. Não merecias ter morrido. Mas merecias ainda menos o falecer em sofrimento que te esperava. És daqueles pacientes que gostava de, talvez, quem sabe, um dia mais tarde, voltar a encontrar.

 

“Lindo gatinho, que lindo gatinho. Lindo gatinho, que lindo gatinho. Lindo gatinho, que lindo gatinho...”

26/12/2018

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