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REVOLUÇÃO AO FINAL DO DIA

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           Às vezes apetece-me agarrar as pessoas pelos ombros e abaná-las até não se aguentarem mais em pé. Puxar as orelhas e gritar-lhes aos ouvidos: “Ouçam-me!!!”. Mas não posso. Aliás, é a última coisa que posso fazer.

         As pessoas, simplesmente, aparecem-me para reavaliações uma semana depois da data marcada por mim, acompanhadas por um animal num estado de saúde ainda mais crítico do que aparentava na primeira consulta. Olham para mim, de soslaio, porque nunca me parecem conseguir encarar diretamente nos olhos e comentam, com surpresa na voz: “Doutora, acho que ele está pior.” Começo a fazer perguntas, para perceber o que é que se passou nos últimos dias. Já sei que o que vou ouvir são meias verdades. Lá no fundo, as pessoas entendem que alguma coisa de errado fizeram. Normalmente, no meio da conversa, acabam por admitir uma entre as várias hipóteses: ou não fizeram a medicação até ao fim, ou tiraram o colar porque “coitadinho do bicho estava muito parado”, ou seguiram as recomendações da vizinha… Por vezes, a situação não é grave, apenas precisam de refazer a medicação. Porém, noutros infernais momentos, fico algo perturbada quando chega ao ponto em que está em risco a vida do próprio animal. Felizmente, as situações piores que descrevo não aparecem com muita frequência. Mas quando aparecem, fico nauseada. Chego a casa envolta numa nuvem escura de preocupação e raiva, a imaginar os piores cenários que sei que os donos se recusam a ver. Quase sempre, durante a consulta, as pessoas viram-se para o animal e, numa tentativa de se auto-desculpabilizarem, dizem algo do género: “Já viste o que foste fazer? Já viste onde te foste meter?” É nestes momentos que me apetece vociferar: “Não, minha senhora, o problema não foi o seu animal ter adoecido. Acidentes, doenças, quedas, acontecem. O problema foi não me ter escutado, ter feito aquilo que achava melhor indo escandalosamente contra tudo o que eu disse, acabando por levar a esta merda que agora aqui tenho para lhe resolver.” Mas o que verdadeiramente me agonia até às entranhas é quando sei que há a possibilidade de não conseguir solucionar a “merda” que à primeira consulta ainda não estava feita. E tudo porque, pura e simplesmente, não me ouviram. Apesar de estar a fervilhar por dentro, sei que a última coisa que posso fazer é deixar transparecer qualquer tipo de julgamento. Se as pessoas se sentirem julgadas por mim, sei que nunca mais vão aparecer. E, se não vierem mais ter comigo, aí é que eu não o consigo ajudar. Em prol do meu paciente, tenho que manter a calma, explicar o estado crítico em que o animal se encontra e que, daqui para a frente, as recomendações têm que ser seguidas à risca, se não a situação pode piorar ainda mais. No final da consulta, vejo as pessoas a abandonarem a clínica sem saber, depois de tudo o que se passou, se irão voltar no dia agendado para a reavaliação ou se em casa vão fazer aquilo que, impreterivelmente, tem que ser feito. Às vezes ainda têm o desplante de abandonar a receção zangados porque, afinal, têm que gastar mais dinheiro.

       Sozinha, enquanto escrevo a ficha clínica do animal, numa angústia que me consome, pergunto-me: Em que estado me virá o animal na próxima vez? Terei que o submeter a tratamentos drásticos, perfeitamente desnecessários caso as pessoas me tivessem ouvido desde a primeira consulta? Depois de tudo isto, conseguirá sobreviver? Terei que o eutanasiar? Terá o dono que gastar dinheiro numa cirurgia em que o animal pode não sobreviver?

       Depois, quando vou ligar o alarme e fechar a porta da clínica, apercebo-me de que estou a trazer para as minhas escassas horas de descanso do dia, a bagagem emocional do trabalho. É então que penso para com os meus botões: “Fiz o melhor que consigo. Mais não poderia ter feito. Não consigo influenciar o que se passa fora da clínica, dentro das casas das pessoas. O bicho não é meu. Se piorar, piorou. Que se lixe. Se morrer, morreu. Sei que a culpa não foi minha. Sou veterinária, não sou milagreira.” É duro ter que ter estes pensamentos. Eu sei que quando estas frases me passam pela mente estou a ser insensível. Parece quase que sou um monstro. É duro ter que se ser indiferente desta maneira quando dedico a minha vida, o meu dia-a-dia, a tratar de animais. Mas é a única forma da minha sanidade mental sobreviver. Em angústia e stress crónico, não consigo fazer o meu trabalho. E sem fazer o meu trabalho, não consigo ajudar ninguém. Quando amamos demais, temos que saber distanciar-nos em momentos chave para podermos continuar em frente. A realidade, por vezes, dói. Quando não há nada que possa fazer, ser indiferente parece ser a melhor solução para doer um bocadinho menos. Claro que atingir o zénite da indiferença é muito difícil, ou não sentiria eu a necessidade de escrever esta crónica, este desabafo. Procuro principalmente a estabilidade emocional que, por vezes, a minha profissão me tira. A Medicina Veterinária é um pau de dois bicos: tanto tem de belo e maravilhoso, como de feio e infernal. Felizmente, para retornar ao meu ser calmo, tenho a escrita que sempre me acompanha e que, neste final de dia de trabalho, com o estômago a roncar de fome, é capaz de me trazer a tranquilidade a que aspiro. 

20/06/2016

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