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Em Busca do Início de Tudo

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Parte III
O Coração de Sofia

    Sofia era uma criação interessante, diferente de qualquer outro ser do Universo. Um híbrido. Resultava do amor entre um feiticeiro e uma fada da floresta. Infelizmente, não chegara a conhecer bem os pais. Foi uma despedida repentina quando ela era pouco mais do que um bebé. Ninguém conseguia contar-lhe exatamente o que se passara. Mas Sofia gostava de imaginar que o amor que partilharam um pelo o outro e que nutriram por ela, era suficiente para justificar a sua existência. Vivera a infância a saltitar de lar em lar, de mundo em mundo. Aparentemente, era demasiado diferente para ser aceite. Talvez fosse por ter o cabelo encaracolado e ruivo, algo raro no mundo das fadas; ou por ter asas, algo estranho na comunidade dos feiticeiros; ou então talvez fosse por não ter força física, algo impensável para sobreviver num covil de ogres; até sentia pena por ser demasiado alta para as cidades dos duendes, onde fizera alguns amigos para a vida; tinha consciência de que não era suficientemente inteligente para viver com os elfos; e demasiado doce para o mundo dos Homens… Enfim, Sofia não parecia encaixar em parte alguma e sofrera horrivelmente por isso. Solidão, abuso físico, violência psicológica e emocional, falta de afeto… No entanto, apesar de tudo, a nossa heroína conseguiu manter-se íntegra, leal a si mesma, fiel à sua maneira de ser e à visão que tinha do mundo. Encontrou a força necessária para ultrapassar momentos críticos que poucos suportariam, sem nunca vergar ou perder a capacidade de sorrir e de acreditar que tinha que haver um fundo de bondade, algures. Não era capaz de fazer mal, nem a um mosquito que não a deixasse dormir à noite. Na adolescência, ciente de que haveria algum cantinho do Universo feito para ela, abandonou os lares de acolhimento para sempre e seguiu o seu caminho. Acabou por achar o lar perfeito junto do Mundo da Floresta Selvagem. Ao lado das plantas, arbustos e árvores, felídeos, gamos, aves, répteis e outros mais, Sofia encontrou a sua paz. Ali não havia maldade. Também não existia bondade no seu sentido mais altruísta. Mas a crueldade praticada servia uma função de sobrevivência e a complicação das sociedades de seres superiores pertencia a algo de um passado medonho que deixara para trás. Ao chegar à idade adulta, sentiu uma dormência nas mãos, um chamamento mágico. Apercebeu-se nessa altura que crescia com poder da cura. Tinha o dom de produzir feitiços, fosse com gestos ou palavras, capazes de tratar a grande maioria das doenças deste mundo. Desde uma ferida simples, a uma dentada feroz ou até mesmo doenças internas, Sofia aliviava todo esse sofrimento recorrendo à magia do seu enorme coração. Com esta descoberta, decidiu aplicar as suas forças para quem realmente merecia: os seres da floresta. Manteve-se onde estava, na casa de madeira aconchegante, com a sala sempre cheia de gatos, ouriços, passarinhos, tarântulas e lagartixas, feliz por conseguir fazer a diferença junto daqueles que amava e que a amavam de volta. Infelizmente não era possível os seus amigos usufruírem uma vida eterna com qualidade física e emocional. Sabia feitiços que os mantinham vivos para sempre, mas, a partir de certa altura, pouco mais eram que um ser amorfo, sem consciência. Nessa altura, Sofia recorria ao encantamento dourado, que permitia que os bichinhos muito velhotes e frágeis regressassem ao coração da natureza sem qualquer tipo de sofrimento. Talvez devido ao seu passado duro, ou por ter uma ligação tão grande com a terra por onde caminhava com os pés descalços, Sofia mantinha uma relação amigável com a morte. Aceitava que tudo tinha um fim e que a vida era especial por isso. 

          O que Sofia não sabia era que essa paz interior estava prestes a ser posta à prova. Certo dia, numa tarde particularmente soalheira, viu o Vinte Picos sair de casa para a sua caminhada habitual à beira do rio que corria atrás da casa. Vinte Picos era um ouriço-cacheiro que sofrera uma terrível doença de pele que quase o matara. Sofia encontrou-o por baixo de um arbusto, com a pele quase toda queimada pela maldição. Com o seu enorme coração, acolheu-o e salvou-o. Ficou livre da doença, mas ficara para sempre apenas com 20 picos espalhados pelo corpo. Tinha um aspeto estranho, quase feio. Mas Sofia amava-o profundamente pela sua fragilidade e personalidade intrépida. Por ter o seu principal mecanismo de defesa comprometido, o ouriço raramente se afastava dela e via-a como uma mãe. Subitamente, a noite chegou e Sofia começou a sentir-se inquieta. Vinte Picos ainda não regressara. No dia seguinte, de manhã, depois de ter percorrido a floresta em redor da casa, a pequena fada teve um mau pressentimento. Não via o seu querido amigo em parte alguma. Com soluços dolorosamente presos na garganta, não era capaz de desistir e voltar para casa. Ao terceiro dia, encontrou-o. Numa praia, a cerca de 10 quilómetros de distância da pequena cabana. Tinha uma ferida profunda na patinha de trás e um rasgão de pele grande na barriga. Certamente tinha sido agarrado por alguma ave de rapina que o deixara cair durante o voo. Quando o pegou ao colo e viu que ainda respirava, Sofia controlou as lágrimas e correu para casa. Estava tão enfraquecido… Depois de cinco horas seguidas de diferentes feitiços e encantamentos, Sofia deitou-se, exausta. Conseguira salvá-lo, mas pouco reagia. Respirava, mas apenas pelo efeito da magia. O seu corpinho apresentava-se tal como os dos amigos velhotes quando estava na hora de entregarem os seus últimos suspiros à Mãe Natureza. Mas Vinte Picos não era velhote. Tinha apenas seis meses de idade. Sabia que não havia mais nada que pudesse fazer por ele. Se não o entregasse à morte, o seu querido amigo estaria condenado a viver para sempre numa existência sofrida para ambos. Dominada pela frustração, raiva e uma profunda tristeza, Sofia entregou-se às lágrimas e acabou por adormecer quando o corpo caiu de exaustão.

         Nos dias que se seguiram, Sofia vagueou pela floresta, apagada. As asas caídas e a luz corporal esmorecida. Mal comia. De manhã cedo, acordava e mirava Vinte Picos, na esperança que tivesse, de alguma forma, encontrado alguma força interna que o acordasse daquele coma. Simplesmente não aceitava que perdera o seu melhor amigo para sempre. Ele ainda respirava nos seus braços.

        Certo dia, dominada pela raiva, tocou numa árvore e gritou. Sentia-se profundamente culpada por não ter socorrido Vinte Picos a tempo. A mágoa era tão forte, que as raízes da árvore se descolaram da terra e voaram alto pelo céu.

          - Que raio de magia foi essa?!

        Sobressaltada, Sofia saltou para trás e, de olhos arregalados, procurou quem lhe dirigia palavra. Há anos que não ouvia uma voz humana.

          - Tens asas de fada, mas a força de feiticeira. Que ser és tu? - A segunda voz que a abordou falou num sussurro calmo. 

           Aquele súbito interrogatório vindo de uma elfo e de uma humana trouxeram-lhe memórias dolorosas, o que a deixou ainda mais enraivecida. 

          - Uma humana e uma elfo a viajarem juntas? E vieram parar ao Mundo da Floresta Selvagem?! Desculpem, mas aqui quem tem perguntas a fazer sou eu! - Sofia fechou os punhos, pronta para descarregar a fúria dos últimos dias.

          Rosa abriu a boca, prestes a ripostar no mesmo tom. No entanto, Esmeralda levantou a mão, num gesto que indicava que deveria manter-se em silêncio. Para grande espanto de Sofia, a humana respeitou a sabedoria da elfo e imediatamente recuou.

           - A tua magia é invulgar. Muito forte e emocional. Algo de errado se passa. Queremos saber se podemos ajudar.

        Sofia sentiu o coração aconchegar-se. Aquelas palavras rapidamente a acalmaram e teve empatia pelas criaturas recém-chegadas. Presenteara-as com uma receção tão pobre quando, aparentemente, traziam boas intenções. Ansiosa por libertar o peso dos ombros, decidiu desabafar os acontecimentos dos últimos dias. 

          - Ficaste assim por causa de um ouriço meio careca? - perguntou Rosa, incrédula.

        - Todos os dias dedico-me a cuidar deles. É a minha vida. É a minha paixão. Eles merecem toda a bondade que me corre nas veias. - Uma lágrima libertou-se e pintou o rosto destroçado de Sofia. - Faria tudo para trazer o Vinte Picos de volta

      Rosa e Esmeralda trocaram um olhar intenso, esperançoso. Seria possível que tivessem encontrado a última peça? Poderia a trindade estar finalmente completa?

       - Querida Sofia - começou Esmeralda, enquanto carinhosamente lhe pegava nas mãos - acho que te conseguimos ajudar.

07/05/2022

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